voa Carcará


O que você anda fazendo nesses tempos pandêmicos? Por aqui, lidando – como todos – com o que o tempo requer. Dentre os afazeres domésticos, novas rotinas diárias se sobrepõem às demais, como lavar e passar máscaras para uso rotineiro, limpar diariamente maçanetas, ensaboar pacotes de mercado. Depois de tudo limpo, um banho e um café da manhã. Os horários já não são mais os mesmos de outrora, embora haja um esforço para criação de uma outra rotina.

Aqui, obedeço o que o corpo está pedindo em reação aos fármacos que uso para enfrentar os novos dias e conviver com a síndrome do pânico e a ansiedade. Os efeitos colaterais servem de contraste para entender o funcionamento deste corpo que escreve. Dotado de hormônios e outras vidas que humanas, às vezes , funciona à revelia da normalidade imposta pelas tecnologias do ser. Ansiolíticos e anti-depressivos funcionam como ferramentas quase sempre eficazes de normalização desse corpo que precisa responder às demandas da vida e fazer-se produtivo. Esse é um desabafo, claro! Mas não é sobre isso que gostaria de chamar sua atenção neste momento. Na verdade, me interessa compartilhar uma história e um pensamento otimista. Vamos, lá!

Debruçada sobre as leituras semanais, parei por alguns instantes para preparar o café da tarde. Isto me fez lembrar do ritual entorno do ato de sentar-se à mesa com os amigos para um café. Senti saudades dos amigos e do ritual. Como muitos da minha geração, postei nas redes sociais sobre isso. Voltei à leitura no escritório improvisado no quarto (uma mesa de cozinha dobrável posta em frente à janela com uma cadeira da mesa de jantar). Distraída nos pensamentos e sorvendo o acolhimento e o amargor do café, avistei uma vizinha querida. Rapidamente, chamei-a. Debruçada na janela, como as bonecas namoradeiras – eu aqui e ela lá -, trocamos uns dedos de prosa.

A prosa foi interrompida por um voo rasante dado por um carcará. Carcará foi como ela chamou. Não sei de qual espécie de ave de rapina estamos falando. A ave, em questão, capturou um pombo. Juntas, observamos um momento de caça, num condomínio que nem árvores possui. Uma caça numa selva de pedra. A vizinha me disse que o carcará mora aqui também, no alto de um dos prédios. E todos os dias, quase no mesmo horário, ele sai para cumprir sua rotina alimentar.

Fiquei abismada, obviamente. Primeiro, porque minha sensibilidade me impede de apreciar o ato da caça em si. Segundo, por saber que eu tenho um vizinho carcará que “pega, mata e come”. O pensamento, entrecruzado pela leitura dos escritos de Anna Tsing, que me vem nesse momento e que desejo compartilhar é que a vida é persistente. O carcará me deixou otimista.

Ontem, no mesmo horário, abri as cortinas e olhei para o céu. Vi dois carcarás voando em círculos.

Uma consideração sobre “voa Carcará”

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