Talvez minha bolha social física e virtual esteja muito restrita, mas recebi a divulgação do jejum e intercessão no dia de hoje por um grupo whatsapp por meio de amigos da época da faculdade de História. Não se tratava de uma interpelação no sentido de convocação à adesão, mas um convite para uma conversa, um comentário. Jejum é uma disciplina importante na vida cristã, mas acredito que há melhores cristãos que eu para explicar e debater teologicamente o significado para a vida do crente ou da igreja. Aqui, o que chama minha atenção não é apenas sobre como o vídeo de divulgação incorpora símbolos pátrios ao jargão militar também usado pelos cristãos evangélicos, que se autodenominam exército de Cristo. Amplio a leitura deste momento para onde o pensamento me levar.
Ao ver o vídeo sem qualquer paciência – confesso – e passando rapidamente para ver os fomentadores do “jejum nacional”, vi uns poucos rostos desconhecidos. Vi outros muito famosos para os mais antigos de vivência cristã, dado o destaque que desfrutam por possuírem notórios programas de televisão e, também, por abarcarem novos públicos nos meios digitais. Neopentecostais, na maioria, mesmo que alguns estejam vinculados às denominações tradicionalmente reformadas. Ao contrário do que costumam pensar, os evangélicos não são todos iguais, não pensam do mesmo modo e há questões teológicas e doutrinárias cruciais que, inclusive, justificam toda essa gama denominacional.
O sentimento que fica pelo “jejum nacional”, ou pelo momento que vivemos, é o mesmo: de um grande pesar. Como cristã, considero a fé fundamental para passarmos por essa pandemia. Inclusive, porque para muitos será a última oportunidade de rever sua própria vida, de se arrepender, de pedir perdão e de amar. Alguns, já se foram tão rápido quanto o quadro de evolução da doença; de um desconforto ao coma induzido, da intubação ao óbito. Do óbito à cova sem direito ao velório. Uma morte solitária. E, para os que ficam, uma irrupção – agressiva e intempestiva – de luto.
Deste momento, alguns terão a oportunidade de agradecer e, talvez, enxergar a vida como milagre ou como uma segunda chance. Outros, seguirão. A morte espreita a todos e é compreensível que uma forma de lidar com o medo e a ansiedade seja recorrer à fé – no meu caso, fé e uma combinação de antidepressivos e ansiolíticos. E, aqui, explica-se o jejum que, tanto funciona como uma espécie de sacrifício onde busca-se um favor, como o reconhecimento de que não se tem o controle; e, a despeito disso, há a oportunidade para se aproximar da divindade capaz de sanar todos os males.
Poderia ainda desdobrar cada um desses elementos e ainda, trazer outras possibilidades mais amorosas para ler este chamamento. E sabe por que não o faço neste momento? Porque este exército aparenta-se mais com milícias coronelescas que já são conhecidas em nossa história política. Donos de grandes fortunas, de inúmeras igrejas e de incontáveis seguidores – dizimistas e ofertantes – , esses homens são como coronéis. Não satisfeitos com o dinheiro de que dispõem, também participam da vida política e econômica locais, regionais e, agora, nacionais. O grande jejum é uma demonstração de fé, sem dúvida. Assim como é de medo, de poder dos líderes religiosos de massa e, também, uma demarcação de apoio ao presidente da República.
Não desqualifico em nenhum momento a desaprovação de muitos do uso da fé para esses fins, mas há de concordar que política e religião andam juntos faz tempo. Alguns vão alegar que o Estado é laico! E que professora de história seria eu para discordar, não é mesmo? Talvez, uma professora de história conservadora. Não é o caso, deixo claro. Mas, esse é o ponto onde quero chegar, ou seja, se o Estado é laico, o presidente e uma série de deputados e políticos não são. E o fato é de que se tornará cada vez mais comum que termos antes restritos aos guetos evangélicos extravasem para a política, porque para nós é indissociável. Ou você é cristão ou não é. E independente do modo como possamos performar as doutrinas e tradições em nossas inúmeras denominações, o ser cristão-evangélico põe-se como diferença nesse jogo. E como lidamos com a diferença, é uma importante questão.
É absurdo termos um presidente que convoque cristãos para um jejum, mas não é que desfrutemos todos de feriados católicos e até mesmo o mais sincrético de todos, São Jorge?! Talvez, melhorando a questão, seja importante refletir sobre pesos e medidas. Entendo perfeitamente que, por pano de fundo, o presidente esteja tentando se comunicar com seus seguidores, seu rebanho, em um momento de tanta dor e da demanda por uma liderança competente para administrar no caos. Justa a crítica, não fosse o fato de que em toda coletiva de imprensa o, agora aclamado, Ministro da Saúde faz demonstrações públicas de fé católica, fala com seus eleitores e colaboradores, convida às orações. E não vi qualquer linha sequer escrita sobre isso. Nem um áudio ou vídeo tosco de whatsapp. Então, recoloco a pergunta, a preocupação com o chamado ao Jejum realmente é por que se preocupam com a laicidade do Estado?
Acredito mais num choque de fronteiras ontológicas e empurrar eventos como este – ou mesmo a fala de suas lideranças – para categorias como a do fundamentalismo religioso, da manipulação da fé ou alienação não ajudam em nada os críticos na desmontagem deste tipo de articulação discursiva e de prática política. Ao contrário, só fomentam o vínculo com base na percepção da perseguição religiosa. O martírio é importante para as narrativas cristãs, leitores e leitoras de Marx, Gramsci, Nietzsche, Paulo Freire, Derrida, Foucault e Deleuze. Então, leiam a Bíblia. Pode ser na Nova Versão Internacional, que é mais palatável. Faça o exercício que os neoconservadores estão fazendo, ou seja, saindo de suas zonas de conforto. Do contrário, as esquerdas continuarão a se perguntar como chegamos ao ponto em que estamos. Nós, evangélicos, fomos educados para chegar ao poder. E, infelizmente, quem conseguiu alcançar o posto primeiro foram os “terrivelmente evangélicos” e não os “progressistas”.
Para finalizar, gostaria, ainda, de compartilhar a resposta que eu dei ao convite a conversa sobre o “grande jejum”: é triste ver gente usando a palavra de Deus com essa finalidade. De qualquer modo, não sou eu quem vai dizer se Deus vai ou não receber esse “sacrifício” de jejum. Também oro pelo país, pelos governantes, porque é bíblico. Não conheço nenhum líder cristão próximo que esteja aderindo à campanha, pelo menos explicitamente, por sorte minha. Mas todos que conheço estão de joelhos orando por suas comunidades de fé, suas famílias, seu país e pelo mundo. Alguns, jejuando. Tanto oração quanto o jejum fazem parte do nosso relacionamento com o nosso Pai. São disciplinas espirituais íntimas.
Uma coisa é certa [para nós, cristãos, claro!]: onde dois ou mais estiverem reunidos no nome dEle, ali Ele estará. Aí, amigo… cada um que se cuide! Porque Deus é amor e fogo consumidor.